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quinta-feira, 18 de junho de 2009

DESNECESSÁRIO CITAR MAIS EXEMPLOS

É desnecessário citar mais exemplos de como a nossa postura tradicional, geralmente antitética, de oposição, em comparação com a ânsia de progresso que se tem verificado entre os outros povos ocidentais - pelo menos após a época dos Descobrimentos - e a sua constante abertura a novas ideias, tem contribuído para o nosso generalizado atraso cultural e material (é evidente que há muitas excepções que não invalidam a regra geral e possuímos actualmente diversas Universidades onde se pratica investigação avançada em diversas áreas que resultam em aplicações concretas que até exportamos). No entanto, essa não é a regra. Já nas "Cartas de Inglaterra", Eça de Queiroz aludia à intensa vida cultural da Londres do Século XIX, o que nos faz pensar nas diferenças que certamente a contrapunham à portuguesa da Lisboa de então. Não resisto a transcrever este um tanto longo, mas delicioso capítulo:
"ACERCA DE LIVROS
Outubro chegou, e com este mês, em que as folhas caem, começam aqui a aparecer os livros, folhas às vezes tão efémeras como as das árvores, e não tendo como elas o encanto do verde, do murmúrio e da sombra.
Estamos, com efeito, em plena Book-Season, a estação dos livros.
Estes dois meses, Setembro e Outubro (e eles merecem-no, porque, como cor, luz, repouso, são os mais simpáticos do ano) têm acumulado em si as mais interessantes seasons, as estações mais fecundas da vida inglesa.
A London-Season, a célebre estação de Londres, quando a Aristocracia, maior e menor, os dez mil de cima, como se dizia antigamente, o folhado, como se diz agora, recolhe dos parques e palácios do campo aos seus palacetes e jardinetes de Londres — passa-se em Abril, Junho e Julho, verdade seja. Mas essa é uma vã e oca estação de trapos, de luvas de vinte botões, de lacaios, de champagne, de batota e de cotillon. Enquanto que as outras!...
Olhem-me para estas sábias, úteis, viris, solenes seasons, que abundam nestes dourados meses de Setembro e Outubro. Isto sim! Aqui temos, por exemplo, a Congress-Season, a estação dos Congressos.
Que espectáculo! Toda a verde superfície da Inglaterra está então, de norte a sul, salpicada de manchas negras. São congressos em deliberação. Há-os metafísicos e há-os de cozinheiros.
Aqui duzentos indivíduos carrancudos e descontentes, elaboram uma nova ordem social; além, uma multidão de sábios, acocorados,semanas inteiras, em torno de um objecto escuro, não podem chegar à conclusão se é um tijolo vilmente recente ou uma laje da câmara nupcial da rainha Guinevra; e adiante, cavalheiros anafados e luzidios assentam a doutrina definitiva da engorda do leitão — esse amor!
Os congressos mais notáveis este ano foram — o de medicina em Londres, a que assistiram mil e trezentos congressistas, médicos cirurgiões dos dois mundos e dos dois sexos, e onde se prometeu à humanidade, para daqui a anos, a supressão das epidemias pelas vacinas; o da British Association, a grande Sociedade das Ciências, o congresso anual celebrado este ano em Iorque) em que o presidente, Sir John Lubbock, esse amável sábio que tem passado a existência a estudar as civilizações inferiores dos insectos, laboriosas democracias de formigas, deploráveis oligarquias de abelhas — ocupou-se desta vez, dando um balanço da ciência durante os últimos cinquenta anos, a mostrar algumas das estupendas habilidades desse outro efémero insecto, o Homem; e enfim um congresso anual da Igreja, celebrado em Newcastle, composto de bispos, dignitários eclesiás_cos. teólogos, doutores em divindade, este largo clero anglicano, mais douto e literário da Europa. Neste, entre outros assuntos, scutiu-se a Influência da Arte na vida e no pensar religioso: mas, santo a mim, o resultado mais nítido foi o revelar incidentalmente que a frequentação dos templos, em Inglaterra, diminui de um terço todos os dez anos, ao passo que o espírito de religiosidade cresce nas casas, tornando-se assim o sentimento religioso cada dia mais desprendido das formas caducas e perecíveis das religiões.
Neste momento há outros congressos — o dos Metalurgistas, o das Ciências Sociais, o dos Telegrafistas, o Arqueológico, o dos Lavradores, o dos... Enfim, centenares. Até o dos Browninguistas. Não sabem o que são os Browninguistas? Uma vasta associação, tendo por fim estudar, comentar, interpretar, venerar, propagar, ilustrar. divinizar as obras do poeta Browning. Isto, mesmo neste país de arrebatados entusiasmos intelectuais, me parece um pouco forte. Browning é sem dúvida, com Shelley, Shakespeare e Milton, um dos quatro príncipes da poesia inglesa: mas tem o inconveniente de estar vivo. Ele próprio assiste, materialmente, com o seu paletó e o seu guarda-chuva, ao congresso de que é objecto espiritual e assunto: e fatalmente, pelo efeito, mesmo da sua presença, a admiração literária tende a tornar-se idolatria pessoal, e os shake-hands, que distribui, começam naturalmente a ser mais apreciados no congresso que os poemas que ele escreveu. Por isso mesmo que o divinizem, o amesquinham: não é então o grande poeta de Inglaterra, é o particular dos Browninguistas; deixa assim de ser um espírito falando a espíritos — para ser apenas um manipanso, aterrorizando supersticiosos.
Mas, continuando com as estações, temos ainda a Yachting-Season a estação náutica, das regatas, das viagens em yacht. Hoje, em Inglaterra, ter um yacht é, como entre nós montar carruagem, o primeiro dever social do rico ou do enriquecido, uma das formas mais triviais do conforto luxuoso. Um yacht não é só um frágil e airoso barco de cinquenta toneladas e vela branca; pode ser também um negro e poderoso vapor de duas mil toneladas e sessenta homens de tripulação. Neste último caso, em lugar de bordejar gentilmente em redor das flores e das relvas da ilha de Wight, ou de ir mergulhar nessas prodigiosas paisagens marinhas do alto norte da Escócia, vai dar a volta ao mundo, carregado de Bíblias para os pequenos patagónios, de champagne e de amor para as lindas missionárias vestidas de marinheiras. A vida de yacht tem os seus costumes especiais, a sua etiqueta, a sua fraseologia, a sua moral própria, e sobretudo a sua literatura. A literatura de yacht é vasta — William Black, o autor das Asas Brancas, do Nascer do Sol, da Princesa de Thude, o seu romancista oficial; um paisagista maravilhoso, de resto, tendo na sua pena todo o vigor do pincel dum Jules Breton.
Temos igualmente neste mês a Shooting-Season, a estação da caça ao tiro, que abre no 1º de Setembro com uma solenidade e no meio de um interesse público tão intenso, tão fremente - que me dá sempre ideia do que devia ter sido, nas vésperas da Grande Revolução, a abertura dos Estados Gerais. Peço perdão desta abominável comparação — mas a carne é fraca, e eu considero esta estação sublime. É nela que se caça o grouse, e é durante ela que se come o grouse. Não sabem o que é o grouse? É um pássaro do tamanho da perdiz, que vive (Deus o abençoe!) nos moors, ou descampados da Escócia... Agora deixem-me repousar um momento, e ficar aqui, num êxtase manso, pensando no grouse, com as mãos crispadas sobre o estômago, o olho enternecido, lambendo o lábio...


NOTA - Os que porventura me lêem, já há muito leram as "Cartas de Inglaterra" do Eça. O que aqui ficou é apenas um extracto do Capítulo II do seu livro. A quem não as tenha lido, recomendo vivamente a sua leitura.